Apelação n.º 9103520-08.2009.8.26.0000
SEGURO OBRIGATÓRIO (DPVAT) PRESCRIÇÃOTRIENAL 206, § 3º,
INCISO IX, DO CC. OCORRÊNCIA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO
VOTO Nº 14688
Inconformados com a
sentença que julgou extinta em razão do reconhecimento da prescrição a ação de
cobrança de seguro obrigatório por danos causados por veículos automotores de
vias terrestres (DPVAT), apelam os autores pretendendo a procedência da demanda,
aduzindo, em síntese, que a regra a ser aplicada ao seguro em questão é a do
artigo 205 do CC, por não se enquadrar na hipótese de responsabilidade civil.
O recurso foi
recebido e processado no duplo efeito,com contrarrazões.
É o relatório.
Cuida-se de ação para
recebimento de seguro DPVAT, proposta pelos filhos de vítima fatal de acidente
de trânsito, ocorrido em 16 de junho de 1993.
O prazo
prescricional, para hipótese dessa natureza, era de 20 anos, nos termos do art.
177 do Código Civil de 1916, mas com o advento do atual Código Civil, em vigor
desde 11 de janeiro de 2003, passou a ser regulado pelo art. 206, § 3º, inciso
IX, que reduziu o
prazo de prescrição
para 3 (três) anos.
O fato jurígeno a
partir de quando passou a fluir o prazo prescricional é dado pela data do
sinistro, ocorrido em 16.06.93.
Entre esta data e a
vigência da lei atual transcorreu tempo inferior à metade do prazo
prescricional de acordo com a norma revogada. Assim, segundo o art. 2028 do
Código Civil, há que prevalecer o prazo reduzido da lei nova, cujo termo
inicial é o da entrada em vigor do novo Código.
Assim, tendo os
recorrentes proposto a ação em 25.03.08, seria mesmo de rigor o reconhecimento
da ocorrência de prescrição, pois teriam eles somente até 11/01/06 para fazê-lo
(prazo de três anos a partir de 11 de janeiro de 2003).
Destaque-se ademais,
que os autores não impugnam o termo inicial para contagem do prazo
prescricional, limitando suas insurgências à aplicação do prazo prescricional
de três anos para a hipótese, argumentando devesse ser o de dez anos, previsto
no artigo 205 do mesmo diploma.
Há, é fato,
entendimentos jurisprudenciais que corroboram a tese da apelante no sentido de
ser inaplicável o prazo de três anos previsto pelo art. 206 § 3º, inciso IX, do
atual CC, sob o fundamento de não ser o seguro obrigatório de veículos DPVAT um
seguro de
responsabilidade civil, mas sim de danos, vez que a
indenização é paga
independentemente da apuração de responsabilidade,
devendo, por
conseguinte, submeter-se, na ausência de norma específica,
ao prazo prescricional
geral de dez anos, estabelecido pelo art. 205 do
estatuto civil.
Os defensores desta
tese argumentam, em essência,
o seguinte: o direito
de indenização securitária das vítimas dos
infortúnios de
trânsito prescinde da apuração de qualquer espécie de
responsabilidade do
causador do dano, exigindo apenas a prova da sua
ocorrência e do seu
nexo causal com o respectivo acidente. Assim, se a
indenização deve ser
paga independentemente da existência de qualquer
situação que pudesse
implicar na responsabilização civil do segurado,
persistindo o direito
da vítima até mesmo nas hipóteses de exclusão de
responsabilidade por
rompimento do nexo causal (caso fortuito, força
maior, culpa
exclusiva da vítima e ato de terceiro), ou quando a vítima
for o próprio
condutor ou proprietário do veículo acidentado, não se há
identificar na
espécie um seguro de responsabilidade civil, o qual,
segundo o art. 787 do
CC, é definido como aquele onde “o segurador
garante o pagamento
de perdas e danos devidos pelo segurado a
terceiro”. Se o
direito ao recebimento do seguro é sem contrapartida de
responsabilidade
civil do dono ou motorista do veículo, o seguro, ainda
que obrigatório, é de
danos e não de responsabilidade civil. Desse modo,
inaplicável seria o
prazo de prescrição trienal previsto no art. 206, § 3º,
inc. IX, devendo
incidir, à mingua de regra específica, o prazo geral do
art. 205, ambos do
CC.
No intuito de melhor
dirimir a questão, relevante
estabelecermos com
maior precisão a distinção entre seguro de
responsabilidade
civil e seguro de danos.
Segundo destaca
Voltaire Marensi, citando lição dos
clássicos Mazeaud et
Tunc, “... o seguro de responsabilidade é um
contrato pelo qual o
segurador se compromete a garantir o segurado
contra reclamações
das pessoas com respeito às quais poderia ser
exigível a
responsabilidade desse segurado e contra as resultantes
dessas reclamações,
em troca do pagamento, pelo segurado, de uma
soma fixa e
antecipada, o prêmio, devido geralmente por vencimentos
periódicos. E
arrematam: “Formam, assim, parte dos seguros contra
danos, que garantem o
segurado contra os riscos que ameaçam seus
bens ou sua fortuna”” (O Seguro no
Direito Brasileiro, 8ª edição, Ed.
Thomson, 2007, p.
280/281).
Enquanto no seguro de
danos, propriamente dito, o
segurado é garantido
diretamente contra risco de perda de bens
integrantes de seu
patrimônio, no seguro de responsabilidade o risco de
perda patrimonial é
garantido indiretamente, na hipótese de ter seu
patrimônio ameaçado
em razão da obrigação de indenizar terceiro por
danos que venha
causar-lhe.
Assim, possível
concluir que, embora a recíproca
não seja verdadeira,
todo seguro de responsabilidade civil é, na essência
um seguro de danos.
Conforme conclui com precisão Voltaire Marensi,
“A diferença
substancial existente entre o seguro de responsabilidade
civil e do de danos é
que neste se configura uma relação jurídica só
entre o segurado e
segurador, ao passo que no seguro de
responsabilidade
civil a indenização é paga tendo em vista a lesão a um
terceiro prejudicado
pelo segurado”
(op. cit., p. 293).
O denominado seguro
DPVAT é um seguro
compulsório, feito
pelo proprietário de veículo automotor, a quem
compete o pagamento
do respectivo prêmio, e visa a ressarcir, nos
limites fixados em
lei, os danos sofridos por todo aquele que vier a ser
vítima de acidente
provocado pelo veículo, independentemente de
apuração de culpa,
nos termos do art. 5º da Lei 6.194/74, modificada
pela Lei 8.441/92.
Isto não significa
outra coisa senão dar cobertura a
terceiros contra o
risco criado pelo segurado-proprietário derivado da
simples utilização ou
circulação de seu veículo. Ora, se assim é, vale
dizer, se o seguro se
presta para indenizar lesão causada a terceiro
prejudicado em razão
de acidente envolvendo veículo do segurado, há
que se qualificá-lo
como seguro de responsabilidade civil.
O fato de ter a lei
instituído na espécie uma
responsabilidade
objetiva, ao prescrever o direito à indenização
independentemente de
apuração de culpa na causação do dano, não se
presta para elidir a
natureza do seguro como de responsabilidade civil.
Isto porque, conforme
já há muito assinalou José de
Aguiar Dias, “... na
denominação responsabilidade civil, o que na
verdade hoje se
encerra é todo o problema da reparação do dano, cuja
idéia, atendendo à
preocupação de restaurar, pelo ressarcimento, o
status quo, prima sobre a
antiga noção da obrigação de indenizar,
emergente da culpa” (Da
Responsabilidade Civil, Forense, ed. 1944,
vol. II, p. 408).
O fenômeno da
coletivização da responsabilidade
civil pela via da
designada teoria do risco, hoje expressamente
contemplada pelo novo
ordenamento civil (parágrafo único do art. 927),
ampliou o conceito de
responsabilidade civil, fazendo-o transcender as
fronteiras da
dogmática clássica que o limitava ao princípio da culpa,
conferindo-lhe uma
nova dinâmica conceitual, ditada pelo princípio da
solidariedade, com a
priorização do elemento dano sobre a culpa.
Desse modo, passou-se
a reconhecer, em sede de
responsabilidade
objetiva, ser o dever jurídico de indenizar uma
decorrência direta da
verificação do dano. Responsabilidade e dano se
equipararam, de tal
arte que a existência da responsabilidade deriva
exclusivamente da
constatação do fato danoso em si mesmo, ou seja, o
princípio gerador da
obrigação de indenizar decorre apenas da
verificação da
existência do dano e seu nexo causal com o fato gerador.
Havendo dano, haverá
responsabilidade civil de seu causador,
independentemente de
culpa.
Não prospera,
portanto, a construção argumentativa
de não ser de responsabilidade
civil o seguro DPVAT pelo fato de ser
devida a indenização
independentemente de culpa do agente causador.
A objeção de ser
devida a indenização mesmo nas
hipóteses da faltar o
nexo causal, como, p, ex., nos casos de culpa
exclusiva da vítima,
também não se presta para negar ao seguro
obrigatório de
veículos sua natureza de responsabilidade civil.
É fato que, mesmo
sendo de responsabilidade
objetiva, embora
desnecessário o elemento culpa, preconiza a doutrina
não ser possível
responsabilizar aquele que não tenha dado causa ao
evento, o que
importaria em admitir como eximentes de
responsabilidade as
causas de exclusão do nexo causal (caso fortuito,
força maior, culpa
exclusiva da vítima ou fato de terceiro).
Contudo, conforme bem
esclarece Sérgio Cavalieri
Filho, “Sempre que
surge uma nova doutrina, logo se multiplicam os
seus extremos. Isso
também ocorreu no que respeito à responsabilidade
objetiva, de sorte
que, em torno da idéia central do risco, surgiram
várias concepções,
que se identificam como verdadeiras subespécies ou
modalidades, dentre
as quais podem ser destacadas as teorias do riscoproveito,
do risco
profissional, do risco excepcional, do risco criado e a
do risco integral.
(...)
A teoria do risco
integral é uma modalidade
extremada da doutrina
do risco destinada a justificar o dever de
indenizar até nos
casos de inexistência do nexo causal. Mesmo na
responsabilidade
objetiva, conforme já enfatizado, embora dispensável
o elemento culpa, a
relação de causalidade é indispensável. Pela teoria
do risco integral,
todavia, o dever de indenizar se faz presente tão-só em
face do dano, ainda
nos casos de culpa exclusiva da vítima, fato de
terceiro, caso
fortuito ou de força maior. Dado seu extremo, o nosso
Direito só adotou
essa teoria em casos excepcionais, conforme teremos
oportunidade ver” (Programa de
Responsabilidade Civil, Malheiros
Editores, 5ª edição,
2003, p.145 e 147/148).
Assim, o fato de se
adotar a teoria do risco integral
em sede de seguro
obrigatório de veículos não significa a negativa de
sua natureza de
responsabilidade civil, mas tão somente em se
considerar ser a
responsabilidade integralmente identificada com o dano,
não excluída mesmo se
ausente o nexo causal.
E, finalmente, a
questão restou pacificada com
decisão unânime da Segunda
Seção do Superior Tribunal de Justiça que
aprovou a súmula de
nº 405, com a seguinte redação: A ação de
cobrança do seguro
obrigatório (DPVAT) prescreve em três anos.
Isto posto, pelo meu
voto, nego provimento ao
recurso, mantendo íntegra a
sentença.
ANDRADE NETO
Relator
Fonte:
TJSP
Maria da
Glória Perez Delgado Sanches
Membro
Correspondente da ACLAC – Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências de
Arraial do Cabo, RJ.
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